Um livro sobre gênero e sexualidade na literatura produzida no Brasilentre fins do século XIX e meados do XX. Também uma obra na qual asperformances de gênero e sexualidade são usadas para discutir ocaráter nacional e as novas imagens de masculinidade e família, opapel da imprensa na difusão de identidades heterodissidentes, asrelações entre modernidade e cosmopolitismo, bem como certos consensos da historiografia literária.
Cobrindo um arco histórico quevai de Joaquim Manuel de Macedo a Mário de Andrade, passando por RaulPompeia, João do Rio e José Lins do Rego, apoiado em extensa pesquisade artigos científicos, de críticos brasileiros, latino-americanos eanglófonos, bem como de material de imprensa, Braga-Pinto descortinacom enorme originalidade um possível panorama da literatura queerbrasileira.
Prova disso é a liberdade para discordar deimportantes críticos de gerações anteriores -- como Walnice NogueiraGalvão, cujo estudo sobre a "donzela guerreira" omite menções àsexualidade e ao desejo homoerótico, ou Davi Arrigucci Jr., para quema penetração de Oscar Wilde no Brasil teria ocorrido de maneirasupostamente "tardia e fantasmagórica" --, ao mesmo tempo em queaproveita contribuições de críticos estrangeiros, como a argentinaSylvia Molloy, de quem o autor empresta a noção de "pose" que dátítulo ao livro.
Chamam também a atenção certo humor e o rasgoimaginativo, presente por exemplo na reerotização de um romance como o moleque Ricardo, ou a especulação desoladora sobre o suicídio como um possível destino comunal para artistas cujo desejo divergente produzimpasses insolúveis. Difícil dizer o que mais me surpreendeu ouagradou no conjunto de ensaios.
Arrisco-me, contudo, a destacar o tríptico sobre o autor de Macunaíma, sobretudo o ensaio inicial,que, denunciando a homofobia na recepção crítica do autor, resiste àexpectativa de tirar "Mário do armário", interpretando-a como sintomatardio da tara autoritária das nosografias oitocentistas e da vontadede controlar "o corpo e a sexualidade dissidente".
Enaltecendoo valor de mediação inerente ao armário e ao segredo nestes tempos tão marcados por antagonismos irredutíveis que nos impelem escolher umlado e odiar o outro, Braga-Pinto destaca a ambiguidade, a estranhezae a sobredeterminação distintivas da expressão artística, que pedem do leitor uma atenção paciente e aberta ao múltiplo. Só por meio delaMário pode se apresentar como trezentos-e-cinquenta: arlequinal efatal, gay e pansexual, católico, antropófago, freudiano, feito de dor e felicidade, de Tietê e Uraricoera, girassol e bicho blau, umescritor que veste a máscara e dá de ombros para seguir sendo, semrevelações nem desmentidos, "tudo o que vocês quiserem".
Fábio Weintraub
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Poses e Posturas inspira-se, em parte, no que a crítica argentina SylviaMolloy chamou de "epistemologia da pose", conceito afim, mas nãoidêntico, ao de "epistemologia do armário", de Eve Kosofsky Sedgwick.Se as noções de "pose" (feminizada) e "postura" (masculinizada) estãoquase sempre relacionadas com identidades individuais ou performancesde gênero, na virada do século XIX esses conceitos adquirem umsignificado mais amplo, associado também à cultura e à identidadenacionais, seja no que diz respeito ao desejo de imitação(cosmopolita), seja na angústia que este desejo provoca.
Daambivalência do "travestimento" enquanto disfarce na obra de JoaquimManuel de Macedo à construção e desconstrução do armário em torno dafigura de Mário de Andrade, os ensaios aqui reunidos tratam destainstabilidade que caracteriza as identidades e identificações degênero, sexualidade e cultura letrada durante os cem anos em que seprocurou definir a autenticidade da nação brasileira e o tiponacional.
Ao lado do tipo original e viril do Homembrasileiro, surgia uma série de atitudes e tipos consideradosinautênticos ou afeminados: entre eles, o figurino, o esnobe, ocabotino, o rastaquera, o bovarista e o pernóstico.
Sobre o autor: César Braga-Pinto ocupa a cátedra George F.Appel Professor in the Humanities na Northwestern University, EstadosUnidos. É autor de As Promessas da história: Discursos proféticos eassimilação no Brasil Colonial (Edusp, 2003), A Violência das Letras:Amizade e inimizade na literatura brasileira (1888-1940) (EdUERJ,2018), e O Homem que passou debaixo do Arco-íris e outras históriassobre sexualidades, gênero e dissidência entre 1880 e 1950 (AlamedaEd., 2023).